Ouvíamos
seu grito de longe: “Olha o dooooooooooooce!”, e era como se viesse de todos os
lados ao mesmo tempo. Ele sempre gritava duas vezes: na primeira, “Olha o dooooooooooooooce!”;
na segunda, algo que até hoje soa em minha imaginação e memória como “Olha o
doce-ah!”
Era
sinal de que nos aproximávamos das duas da tarde. Lá fora, o sol rachava ainda
mais o barro batido, chão de nossa rua; e dentro de casa minha mãe corria
catando moedas.
“Rápido,
rápido”, dizia ofegante, “o véio do doce!”
E era
exatamente assim que o víamos já naquela época: o véio do doce.
Ela
me punha em mãos algumas moedas e dizia:
“Compre
um de coco. De coco, tá? De coco.”
Ela sempre enfatizava o sabor.
Eu saía
de casa correndo, sem camisa, desesperado como se minha vida dependesse disso,
às vezes alcançando-o quase a dobrar a esquina com seu carrinho.
“Seu
galego, tem de quê?”, eu perguntava os sabores mesmo sabendo que 1., minha mãe
queria de coco e 2., os sabores eram sempre coco e batata.
Pedia
então de coco. Ele cortava o pedaço com sua espátula (ou seria uma faca?),
raspando a superfície de alumínio, colocava o doce em um pedaço de papel
dobrado, eu lhe entregava as moedinhas tilintantes e voltava pra casa, com
cuidado para não derrubar a guloseima. Sendo eu um cliente fiel, ele muitas
vezes caprichava, e antes de chegar em casa eu já havia devorado algum pedaço
das bordas do doce de coco da minha mãe.
Apenas
uma vez comprei de batata, contrariando-a. É que queria provar aquele doce branco,
de aparência agradável e textura cremosa, e sabia que ela jamais o permitiria.
Tive que mentir:
“Só
tinha de batata”, falei, evitando encará-la.
Não
sei se ela acreditou ou apenas fingiu acreditar, mas naquela tarde comemos doce
de batata, e eu descobri que preferia o de coco.
Antonio
Ramos de Oliveira, o “galego do doce”, faleceu. Não sei de quê, não sei se
ontem ou hoje (estou longe no tempo e no espaço, as informações aqui me chegam
com algum atraso), mas vi nas redes sociais: foi adoçar o céu. Nascido em 1939,
não sobreviveu a 2020, o ano da peste. Na imagem que lhe prestava homenagens e
comunicava seu passamento, uma máquina do tempo: sua foto, com seu bigode
branco, seu chapéu de palha, sua pele queimada de sol. Lembrei não só das inúmeras
duas da tarde, mas também das crianças da rua que o imitavam gritando, com ele,
“Olha o dooooooooooce!”, ou pulando à sua volta com alegria (seu Dadá, outra
lenda do bairro, mas no caso um vendedor de sorvete, era o único que causava efeito
semelhante na molecada).
Foi
uma sensação estranha por vários motivos: porque percebi que de algum modo o “galego
do doce” marca a passagem do tempo em minha própria história. Quando eu era
criança, ele passava todos os dias, queimado de sol e sem chapéu; quando eu era
adolescente, ele passava de vez em quando e com chapéu; e adulto, poucas vezes
o vi passar. Já se vão 35 anos. Talvez o bairro tenha ficado maior ou suas
forças diminuído, não sei, mas sei que me alegrava com o fato de sabê-lo vivo.
Brincava dizendo que “caminhada faz mesmo bem à saúde”. Descobri-lo morto,
agora, me obriga a escrever alguma coisa. E não sendo o suficiente, sugeri a
Sandra, minha amiga, que tentasse fazer ecoar, hoje, pelas ruas de Tibiri, o
imortal grito de “Olha o dooooooooooooce! Olha o doce-ah!”, o que a meu ver
seria uma bela e merecida homenagem. Mesmo que o grito conjunto não ocorra, me
agrada imaginá-lo. Que seu Antonio descanse em paz.